sábado, outubro 30, 2004

Super Nova

Explosões
O Nada, negro, engole as centelhas
Do lado de lá germina outro mundo. É o principio de Tudo. Trata-se de um Tudo pequenino, com pressa de ser grande, desmultiplicando-se em minúsculas relações, que à primeira vista tendem em ser consideradas como ocasionais. Verifica-se que nada é ocasional. Verifica-se, contudo, que nada é premeditado. É como se o fortuito fosse suposto acontecer. Não por mecanismos, isso não, antes por vontade. É o desejo. Prossegue a construção. Os pequenos elos agigantam-se em prolongadas correntes, como dedos que se cruzam e terminam, alongando-se, em corpos adultos que se abraçam sucessivamente. Constroi-se pela multiplicidade a união. De Tudo se faz um Todo. O Nada é o ventre que acolhe a gestação. Um dia nasce o fruto. Separa-se da raiz e ganha vida própria, não premeditada, ocasional, guiada pelo desejo. Novas explosões se avizinham no espaço deste lado, para se converteram do outro lado, para lá do Nada negro.

domingo, outubro 24, 2004

...

Nada mais do que um toque.
Nada é mais Simples

A pele sente!...Não! A pele não sente!Acolhe apenas.
A pele das minhas mãos brancas, nuas
sustêm reflexos presos em teias delicadas
Toma posse o prazer dos pormenores!
O corpo desenha expressões
Que se desejam tocar num momento bem longe do mundo
A alma quer conhecer mais e mais, quer ir mais profundo.
A pele surge nua, à espreita de beijos nocturnos
Arrepia-se
Embriaga-se com aquele sabor.
Não, Não sente! Trespassa
Propaga o estado febril, o Torpor dos sentidos
À chuva de chamas a beijar como quem desespera
É a armadilha sem pudor, sem dúvidas,
sem melhores razões do que uma vontade a sós,
Una.

É feroz
O abandono da piedade!




sábado, outubro 23, 2004

...

Por sorte ou por ventura entrei na Igreja sobre o ermo mais extremo da Vila, e encontrei lá um Javali. Era muy grande, o bicho até metia medo. Parecia que os meus pés se enterravam no lajeado para se esconderem de tamanha besta, e como fedia a Diabo.Vi que tinha uma pata Ferida, e o medo foi-se embora quando se me deparou a ideia de que o peludo havia vindo rezar à Santa pelo mal de que padecia.Era muy grande e tinha os olhos vidrados. Parecia o primo Tempena. Tempena Leão, filho de minha tia Isoméria, que de cada vez que volta de Espanha traz os olhos assim. Vidrados pois sim. Casado com a Cegonha Velha, que anda sempre com o rabo de arrojo. Chamam-lhe assim por não poder trazer filhos ao mundo, e pelo que dizem atrás dos balcões, o primo casou-se com ela por pena. Tempena é amigo. Não pode ver bicho aflito ou pessoa com fome. Dá-lhe a camisa do corpo caso seja preciso. Foi alimentado pela tia Isoméria com cerveja preta batida com ovo e açucar, e largou a escola antes da quarta classe porque já conhecia os nomes dos rios, das terras e de todas as coisas. Tempena chegou-se a mim de olhos vidrados e entregou-me o nome do porco hirsuto da capelinha. Explicou-me que Joaquim Esteves Tó, assim se chamava o Javali, foi rezar para que acabassem as reservas de caça, que hoje são mais que as terras e não deixam o povo delas caçar para enganar a pobreza. O desgraçado suíno fartara-se de fugir pelos montados e de cavar buracos junto ás azinheiras. Não havia inferno onde se pudesse tapar que os caçadores encontravam até o Diabo, com os seus cães e os seus jipes. Eram estas gentes muy frias e muy más. A piedade tinha lhes caído da nuca logo à nascença.Pareceu-me ímpossivel de acreditar, esta história. Como é que pode um javardo rezar à Santa, na mesma Igreja dos caçadores que disparam até sobre o capim que mexe.

sábado, outubro 16, 2004

A lamber sussurros

Por aí não escaves!

Repousam enterradas sete palmos debaixo dos pés
No cemitério esquecido,
Tristonho Baldio fértil,
As mágoas

Espalhadas de entremeio sem cruzes sem lápides
Ou dedicatórias gravadas
As penas de não ter cometido os piores vicios
Purgam pelos defeitos veniais
Em silêncioso anonimato

Não estão mortas, estão enterradas

Por aí não escaves

De um quarto minúsculo

Depositado no meio da escuridão
O quarto avança sobre mim de paredes distorcidas, contorcidas.
De Joelhos abraçados em posição Fetal
Choro em prece para que tudo despareça escondendo os olhos.
Do lado de fora sente-se somente o Frio.
Não é dor que se compare
À raiz que é arrancada da sua vida.
Estou onde não quero estar,
Sou o que é necessário ser,
Bela Meretriz que se faz à estrada.
Maquio a minha cara com satisfação
Guardo o pagamento como se fosse fundamental
Prossigo apenas com o que mais se espera de mim.
Neste quarto cada vez mais minúsculo, dispo-me para ti.
Amo, entre as lágrimas vertidas da minha Alegria
Danço, com membros de linho a repousar em pele
Engano-me com a tua despresença.
O quarto que me oprime é o próprio esconderijo
Carcere onde me entrego
O dia seguinte
A continuação do que se espera de mim
Sou o que sou
Meretriz
Dou o meu corpo a quem me paga
Sou profissional
Ando pelo mundo como outros tantos,
Acredito ser possível guardar-me sem mácula
E restituir-me, EU, eu mesmo, sem espectativas
Dar-me sem medos das minhas dores
À tua doçura, ao carinho com que me lês.

sexta-feira, outubro 08, 2004

Estórias de Desenhos Inanimados

Chegou o Vento feroz,
traz com ele as danças das folhas caídas e do lixo.
Árvores curvam-se em gemidos sibilados com os seus longos cabelos a tocar o chão, violentamente empurradas de encontro ao chão, perfis sublinhados. A coluna vertebral a quebrar. Dores agonizantes a que se habituaram desde há muito. Lá se vão safando, agitando os braços, inquietas, em desespero mudo de voz.

O lixo vem de todas as partes e vicios,
dividido em partes incertas, sem pertencer a alguém por certo.
Chega brincalhão a varrer a poeira da estrada, dos passeios, os pés dos homens e das árvores. É a pequena multidão de saltimbancos que vai de porta em porta furtivamente, ganhando vida ao som do teclar de um cravo numa melodia repetitiva, enlouquecedora. Carrocel de cores e desperdicios.

Os objectos inanimados querem voar,
A mão segura o chapéu seguro na cabeça, a senhora resguarda o vestido para se resguardar, as bandeiras querem fugir de país em país, um Cristo petrificado em frente da Igreja quer voltar a ressuscitar, bicicletas põem-se nervosas porque na China os Chineses lhes dão com os pés. Insurge-se um descontentamento inanimado. Por todo o lado. Onde o vento chega. Pelo ar.

O Joaquim cigano já tirou as meias da venda,
Queríam andar sem nada lá dentro, queríam voar sem ninguém pagar 1.50€ por elas.
Lá voava o dinheiro.
Lá voa a tenda do Joaquim cigano e da sua familia se não espeta uma estaca mesmo no coração da terra. Tem que ser mesmo no centro, a tapar o buraco por onde sai o vento. Acorrem todos os ciganos de mãos a segurar nos chapéus.
Algazarra tremenda. O que o vento desfaz o homem remenda.

As pregas das calças sacodem-se a querer caminhar mais do que as pernas.
Aves atrasadas nos seus voos dão camabalhotas no espaço, esticando as asas como podem para evitar um qualquer acidente de grandes dimensões. Se chocam contra grandes engenhos fazem do azar um incidente. O boletim informativo não soube ser mais claro, despenham-se estátuas e pirâmides no Cairo.
Estado de sitio. Agitam-se os militares nas suas casernas.

Na Madeira um grupo de Turistas Belgas sofreu um atentado por um grupo de bananas,
Dizem que os frutos se revoltaram, e que o fruto da paixão já não tem o mesmo sabor.
Mais, dizem que as bananeiras se curvaram todas na mesma direcção e empurram agora a ilha para outras águas. Sindicalizaram-se e há quem suspeite que se dirijam para Cuba, onde o Vento sucumbe aos longos discursos de Castro.

A família Simões está revoltada,
Foi obrigada a desmarcar as suas férias ao arquipélago do tio Imperador João.
A culpa é dos sindicatos e do Comunismo. A culpa é toda do Comunismo. Espalha-se o terror na praça. Espalha-se por quem passa. E agora quem devolve o dinheiro das reservas? Ouvem-se marchas de botas rudes com pensos higiénicos a forrar a sola dos pés. Querem tornar a guerra mais suave com pensos higiénicos.
O pai, Antunes, não gosta cá de comunismos. A terra tem de ser bem lavrada.

Onde é que isto vai parar?
O Lixo voa em gargalhadas mobilizando a sublevação. Levanta-se a guerra, voa sobre a revolução. Armas rodopiam ferozes disparando sobre Bananas, cortando rasantes as bananeiras empurradas pelo sindicato. As aves já se mudam para o Oceano Pacífico. Dispara-se sobre tudo o que o vento sacode. Caem as primeiras chuvas em forma de lágrimas.
Finalmente, felizmente, tudo pára quando Joaquim Cigano espeta a estaca no coração da Terra, e o vento deixa de soprar Feroz.
Sussura-se pelos escombros uma paz incerta.
Se não fosse a mão do cigano...

quarta-feira, outubro 06, 2004

Festa

Rosto maquilhado de cores sensoriais que brilham sob efeitos relativos à intensidade dos sons circundantes da sala. Um animal empunhando um punhal estriado, rasga o ventre de um jovem sacrificado para aguçar os prazeres dos Deuses. Recolhem-se as tripas que se queimam nos jarrões de votos aos Homenageados, e espalha-se vinho novo pelas paredes, assim como pelo soalho coberto de mosaicos indiscretos, erguem-se cânticos repetidos como ladaínhas e o quadro apocaliptico e profano da Humanidade mistura-se a pinceladas no quadro do pintor de mangas sujas de tinta, o que quer retratar as epocas das Odes e dos frágeis trapos Dionisianos. O artista de sapatos rotos esfrega o nariz avermelhado pelo frio, feroz invasor que entra pelas frechas do estuque apodrecido das paredes da casa velha, mais se diria as entranhas de um verme morto a secar ao tempo. Sobre a mesa estão pinceis gastos, aparas, e um depósito de beatas que tem como futuro o reaproveitamento, renascerão das cinzas como um novo cigarro, phoenix cancerigena que voltará uma vez mais a arder. Duas maças engelhadas, uma naco de pão endurecido como a vida, e um sibinho de carne seca. É tudo quanto lhe resta. Já perdeu a conta ao que vendeu. Vendeu o que não sabia que tinha venda possivel. Por dois tostôes. Pode ser que os troquem por euros- Foi o que pensou. E agora ali está ele a tentar pintar. Decidiu mudar de profissão assim que viu o conjunto de tintas e pinceis espalhados junto a um caixote de lixo. Pareceu-lhe, no momento da descoberta, que pela forma como incidia a luz, o brilho matizado dos objectos, jurou tratar-se de um milagre. A fome tem destas coisas. Torna-nos crentes, fieis absolutos, devotos inabaláveis. O poeta decidiu então pintar. Sempre era melhor do que ir para a estiva ou para a veda. Sabia que as suas mãos não iriam aguentar. Não nasceu forte e gordo como o irmão. Esse é capaz de levantar um carro com as próprias mãos, e capaz de levar comida para casa. Mas também- pensa logo de seguida- apenas isso: comida.
A longa mesa repleta de iguarias decoradas por penas brilhantes de aves raras, tem sobre si carne humana desnudada, contorcendo-se estes corpos como que dilacerados por uma vontade de unhas e saliva lançada por gestos desenfreados, como que contidos desde o nascimento da volupia. Derramando vinho e comida por todos os lados. Vinho e comida. Vinho e comida.
E assim morreu o poeta numa cave esquecida, construída num livro urbano, vetado à fome e à sede, morreu o poeta pintor, com os pinceis espetados nos dedos, as mangas sujas de tinta, a casa vazia, e duas maças apodrecidas sobre um manuscrito
INACABADO


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O Triunfo da Morte
H.Bosh