sexta-feira, outubro 08, 2004

Estórias de Desenhos Inanimados

Chegou o Vento feroz,
traz com ele as danças das folhas caídas e do lixo.
Árvores curvam-se em gemidos sibilados com os seus longos cabelos a tocar o chão, violentamente empurradas de encontro ao chão, perfis sublinhados. A coluna vertebral a quebrar. Dores agonizantes a que se habituaram desde há muito. Lá se vão safando, agitando os braços, inquietas, em desespero mudo de voz.

O lixo vem de todas as partes e vicios,
dividido em partes incertas, sem pertencer a alguém por certo.
Chega brincalhão a varrer a poeira da estrada, dos passeios, os pés dos homens e das árvores. É a pequena multidão de saltimbancos que vai de porta em porta furtivamente, ganhando vida ao som do teclar de um cravo numa melodia repetitiva, enlouquecedora. Carrocel de cores e desperdicios.

Os objectos inanimados querem voar,
A mão segura o chapéu seguro na cabeça, a senhora resguarda o vestido para se resguardar, as bandeiras querem fugir de país em país, um Cristo petrificado em frente da Igreja quer voltar a ressuscitar, bicicletas põem-se nervosas porque na China os Chineses lhes dão com os pés. Insurge-se um descontentamento inanimado. Por todo o lado. Onde o vento chega. Pelo ar.

O Joaquim cigano já tirou as meias da venda,
Queríam andar sem nada lá dentro, queríam voar sem ninguém pagar 1.50€ por elas.
Lá voava o dinheiro.
Lá voa a tenda do Joaquim cigano e da sua familia se não espeta uma estaca mesmo no coração da terra. Tem que ser mesmo no centro, a tapar o buraco por onde sai o vento. Acorrem todos os ciganos de mãos a segurar nos chapéus.
Algazarra tremenda. O que o vento desfaz o homem remenda.

As pregas das calças sacodem-se a querer caminhar mais do que as pernas.
Aves atrasadas nos seus voos dão camabalhotas no espaço, esticando as asas como podem para evitar um qualquer acidente de grandes dimensões. Se chocam contra grandes engenhos fazem do azar um incidente. O boletim informativo não soube ser mais claro, despenham-se estátuas e pirâmides no Cairo.
Estado de sitio. Agitam-se os militares nas suas casernas.

Na Madeira um grupo de Turistas Belgas sofreu um atentado por um grupo de bananas,
Dizem que os frutos se revoltaram, e que o fruto da paixão já não tem o mesmo sabor.
Mais, dizem que as bananeiras se curvaram todas na mesma direcção e empurram agora a ilha para outras águas. Sindicalizaram-se e há quem suspeite que se dirijam para Cuba, onde o Vento sucumbe aos longos discursos de Castro.

A família Simões está revoltada,
Foi obrigada a desmarcar as suas férias ao arquipélago do tio Imperador João.
A culpa é dos sindicatos e do Comunismo. A culpa é toda do Comunismo. Espalha-se o terror na praça. Espalha-se por quem passa. E agora quem devolve o dinheiro das reservas? Ouvem-se marchas de botas rudes com pensos higiénicos a forrar a sola dos pés. Querem tornar a guerra mais suave com pensos higiénicos.
O pai, Antunes, não gosta cá de comunismos. A terra tem de ser bem lavrada.

Onde é que isto vai parar?
O Lixo voa em gargalhadas mobilizando a sublevação. Levanta-se a guerra, voa sobre a revolução. Armas rodopiam ferozes disparando sobre Bananas, cortando rasantes as bananeiras empurradas pelo sindicato. As aves já se mudam para o Oceano Pacífico. Dispara-se sobre tudo o que o vento sacode. Caem as primeiras chuvas em forma de lágrimas.
Finalmente, felizmente, tudo pára quando Joaquim Cigano espeta a estaca no coração da Terra, e o vento deixa de soprar Feroz.
Sussura-se pelos escombros uma paz incerta.
Se não fosse a mão do cigano...

1 comentário:

Maria disse...

o gargalhar contínuo depois do segundo parágrafo. mas sabes o primeiro parágrafo é tão descritivo e tão real que me chegaram a doer ao de leve os ossos...

a realidade disfarçada de carnaval vivo todo o ano.

que se saúdem sempre todos os não-poetas deste mundo...

sempre.

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