quarta-feira, outubro 06, 2004

Festa

Rosto maquilhado de cores sensoriais que brilham sob efeitos relativos à intensidade dos sons circundantes da sala. Um animal empunhando um punhal estriado, rasga o ventre de um jovem sacrificado para aguçar os prazeres dos Deuses. Recolhem-se as tripas que se queimam nos jarrões de votos aos Homenageados, e espalha-se vinho novo pelas paredes, assim como pelo soalho coberto de mosaicos indiscretos, erguem-se cânticos repetidos como ladaínhas e o quadro apocaliptico e profano da Humanidade mistura-se a pinceladas no quadro do pintor de mangas sujas de tinta, o que quer retratar as epocas das Odes e dos frágeis trapos Dionisianos. O artista de sapatos rotos esfrega o nariz avermelhado pelo frio, feroz invasor que entra pelas frechas do estuque apodrecido das paredes da casa velha, mais se diria as entranhas de um verme morto a secar ao tempo. Sobre a mesa estão pinceis gastos, aparas, e um depósito de beatas que tem como futuro o reaproveitamento, renascerão das cinzas como um novo cigarro, phoenix cancerigena que voltará uma vez mais a arder. Duas maças engelhadas, uma naco de pão endurecido como a vida, e um sibinho de carne seca. É tudo quanto lhe resta. Já perdeu a conta ao que vendeu. Vendeu o que não sabia que tinha venda possivel. Por dois tostôes. Pode ser que os troquem por euros- Foi o que pensou. E agora ali está ele a tentar pintar. Decidiu mudar de profissão assim que viu o conjunto de tintas e pinceis espalhados junto a um caixote de lixo. Pareceu-lhe, no momento da descoberta, que pela forma como incidia a luz, o brilho matizado dos objectos, jurou tratar-se de um milagre. A fome tem destas coisas. Torna-nos crentes, fieis absolutos, devotos inabaláveis. O poeta decidiu então pintar. Sempre era melhor do que ir para a estiva ou para a veda. Sabia que as suas mãos não iriam aguentar. Não nasceu forte e gordo como o irmão. Esse é capaz de levantar um carro com as próprias mãos, e capaz de levar comida para casa. Mas também- pensa logo de seguida- apenas isso: comida.
A longa mesa repleta de iguarias decoradas por penas brilhantes de aves raras, tem sobre si carne humana desnudada, contorcendo-se estes corpos como que dilacerados por uma vontade de unhas e saliva lançada por gestos desenfreados, como que contidos desde o nascimento da volupia. Derramando vinho e comida por todos os lados. Vinho e comida. Vinho e comida.
E assim morreu o poeta numa cave esquecida, construída num livro urbano, vetado à fome e à sede, morreu o poeta pintor, com os pinceis espetados nos dedos, as mangas sujas de tinta, a casa vazia, e duas maças apodrecidas sobre um manuscrito
INACABADO


bar

O Triunfo da Morte
H.Bosh

1 comentário:

rosa disse...

és Escritor - Poeta - Amante das palavras - escultor de frases. amo estas letras tuas com o que tenho e não tenho, com as mãos cheias de ti que te ofereço, com a leitura ávida dos teus textos. nunca me deixes sem eles.