segunda-feira, junho 14, 2004

O velho e o Gato

O Velho.
Maria com o corpo magro e frágil do seu filho inerte nos seus braços de mãe.
O Velho. Mais magro que Cristo, numa nudez sumida de músculo, imaculado de branco cal, vendo que nele não se distinguíam veias, nenhuma, pois tem o sangue diluído como a tinta que sai de um pincel para a água, perturbou-me!
Choquei contra ele assim, quase na mesma posição que encontrei Cristo nos braços de Maria, só que o Velho estava suspenso no ar e de olhos arregalados, tão arregalados que impressionavam. Não tinham paz! Firmemente rigidos como todo o seu corpo frio, fixos como todos os seus braços que de tão magros pareciam os mais longos que vi. Olhos revoltados e quase vazios, escondendo apenas um pequeno tremulo da mais doce inocência.
Como Cristo, a nudez da sua pele era tão impressionante como bela, era forte e também frágil, era triste, tristemente triste. O ancião não disse nada, julgo que já não sabia sequer falar. Afigurava-se-me apenas um anjo branco carregado pelos seus filhos ainda mortais. Pareceu-me uma imagem tão pura que se fez dolorosa.
Tigrado.
Os olhos delineados por um grosso traço negro brilhante, e duas esferas como garras a fitarem o velho. Lambia o seu pêlo brilhante mesmo de frente para o corpo ressequido, orgulhoso da beleza que mostrava ao mundo. Aliás, nada era mais importante que a sua felina beleza, tudo o resto não era mais do que tudo o resto. Estava ali um belo gato jovem, com jeitos de malandro e vadio, acenando a cauda para uma quase vida, despreocupadamente, insolentemente, como qualquer jovem gato, inocente por ser belo. Nada de extraordináriamente invulgar!
Por momentos, creio que o velho branco e o gato tigrado cruzaram olhares, o principio e o fim anteciparam-se ao meio, como que antipodas admirando-se mutuamente. Assim ficaram o gato e o velho por instantes. O velho foi-se embora no seu trono de braços, o Gato foi roçar-se provocante pelas arvores de pernas dos transeuntes.

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