quinta-feira, abril 01, 2004

Ilusões
Coloquei as minhas mãos bem abertas sobre a parede, tocando-lhe suavemente, esticando os dedos para abraçar o mais possível de superfície que se colou por completo á pele das minhas palmas.
Escolhi a posição certa e retirei uma das mãos para em seguida pegar num marcador e com um traço contínuo delinear os contornos da primeira mão. Seguiu-se a outra mão com um gesto semelhante.
Afastei-me da parede. Fui observando curiosamente o resultado. Inclinando a cabeça para a esquerda e para a direita lá fui procurando a melhor perspectiva.
Uma grande almofada de ter pelo chão serviu-me de repouso onde confortavelmente me recostei.
Acendi um cigarro, suspirei uma baforada de fumo e alma, quando os meus olhos despoletaram o mecanismo que escondíam.
As abóbodas de azul começaram a rodar ruídosamente entre as palpebras, tal como se fossem constituídas por várias placas de azul, outras de verde, que oscilavam circularmente convergentes para os centros negros, pináculos misteriosos destas abóbadas. Na realidade, era uma unica parede que rodava por debaixo do lençol transparente e brilhante, realizada com o mesmo material que cobre a pele dos anjos. Vagarosamente movimentavam-se para o negro que as expulsava recriando uma atmosfera revoltosa semelhante a dois oceanos que se confrotam, e o azul enegrecia. O azul escureceu.
O momento e local revelavam-se propicios para a minha obra começar, pele que fiz dos olhos pinceis com que pintei o teu corpo na parede.
As abóbadas giraram lentamente, ruídosamente, conferindo á pintura toda a cor e textura que são tuas. Simultaneamente, pintei-te e admirei-te enquanto ías crescendo em pormenores, em detalhes, em curvas do teu corpo nas quais as abóbodas rodavam ainda mais lentamente, pois todo aquele azul tinha de subir onda após onda. A pele de anjo brilhava cada vez mais.
Quanto mais te pintei mais me seduziste. O tabaco estava a acabar ía já a sala cheia de fumo. Fiquei irrequieto! Não devido á falta de tabaco mas por estar quase a terminar a pintura do teu retrato.
Crescia um fio gelado e agudo dentro de mim.
Só as minhas mãos estavam quentes.
Enquanto te pintei com os olhos, fui sentindo o prazer que tiveste ao te pintar por debaixo dos contornos dos meus dedos. Batia forte o coração, ao compasso de um conjunto de viloncelos, vibrando em gestos ávidos e intensos de loucura esbracejada ao limite da entrega de seus musicos extenuados. Rebentava-me um esgotamento voraz sobre a carne que contudo parecia ter uma força impossível. Era proveniente do espirito.
Dei-me por mim levantado a aproximar-me da parede, a colocar as minhas mãos sobre as mãos delineadas, sobre o teu corpo...e entrei dentro de ti.
Hoje, resta de nós o teu retrato e a minha silheta pintada sobre a parede fria. Os violoncelos tocam suavemente já quase inertes, numa lamúria baixinha, quase inaudivel. O fumo condensou-se e veio repousar na almofada, muito delicademente, sem ninguém ouvir, para poder olhar para a parede onde…

…Deposições

Ouvi esta frase: “as dores partem mas a beleza fica para sempre”, o autor dela foi um pintor “famoso” que pintava velhinho e quase paralizado.
É uma frase para guardar.


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