quinta-feira, março 18, 2004

Bipedismo

O homem ganhou novos horizontes mal começou a caminhar sobre duas patas. Deu tanto valor a este gesto que decidiu valorizar as patas atribuindo-lhes designações especiais. As patas dos membros inferiores passaram a designar-se por "pés", e as patas que agora se libertavam foram baptizadas como "mãos". E isto já assim era antes da Descoberta do Brasil!
A importância dos pés como forma de locomoção só perdeu alguma relevância com a motorização de veículos e da sua consequente vulgarização, permitida por uma sociedade rica em excedentes que criou niveis de prosperidade e produção ao ponto de facilitar a possibilidade de possuir um automovel sem que para tal se necessite ser um priveligiado. TUdo isto com o trabalho das mãos.
Mas estou aqui para falar de pés. Porque os pés fazem-nos acreditar que fomos "feitos" para caminhar. Nas minhas caminhadas tenho encontrado muitos jovens que estão preocupados com o estado, o estado das estradas,o "estado das coisas". São caminhos que lhes custam a percorrer, que os encolhem, que os tornam tristes e doridos, dos quais se queixam os pés pesados e pisados.
Dos que menos se queixam das caminhadas são aqueles que menos caminham, ou que vão caminhando com os pés de outros. Olham para as vias com um ar mais despreocupado, tens os pés fresquinhos e vencem com o seu sorriso enérgico todos os outros que se curvam. Por vezes têm os pés um pouco traumatizados mas ao certo nunca sentiram dores que passam do incómodo ao suplicio, já que não compreendem porque se queixam os outros, e lá vão sorrindo.
Não estou para aqui a descrever as minhas caminhadas, apenas registo que durante estas vou encontrando outros pés que vêm o horizonte de uma forma pessimista, e esta população de pés vai aumentando cada vez mais. Estão a perder o prazer de andar. Sabem que todos os dias terão de o fazer, mas a sensação de não chegar a nenhum lado, sem qualquer conforto e muitas dores, leva-os ao desespero. Não é nada saudável encontrar jovens assim na estrada.
Presumo que caso se prolongue esta situação, novas Indias, novas praias, novas Áfricas, novos mundos serão procurados por estes caminhantes saturados. Não sei se algum dia pensarão em voltar. Não sei se muitos deles terão a coragem de o fazer. Mas esta é á partida a solução mais fácil que os jovens Portugueses encontram. Ou isso ou limitam-se a um bipedismo constante, conformado, protestando a cada passo, sobrevivendo ás tempestades, em direcção um abismo aparente.
Também na vizinha Espanha caminhei com jovens, que nós invejamos pois parecem ter os pés mais bem tratados, menos calejados. Só que eles também se queixavam. Diziam que lá se vai ganhando para pagar o "piso" (geralmente um quartito), comida, ocasionalmente um cinema ou um copo, um livro, uma pequena loucura, uns sapatos novos e pouco mais. Também encontrei alguns caminhantes bem sucedidos, mas desses também os temos por cá, felizmente, pois mais do que causar inveja dão-nos esperanças.
O El Dorado brilha sempre mais do que um prato vazio.
E Bip..bip..bip..bipedismo...lá se vai caminhando em automático. É isto que oiço todos os dias. É isto que me influencia a escrita e a forma de andar.
E mesmo num dia de sol como o de hoje consigo sentir tristeza.
Onde é que isto tudo vai dar? Duvido que seja um vale encantado, mas também não quero acreditar que nos espera um esgoto.
É de tal forma desconcertante que nem sei como acabar este texto...
talvez assim mesmo..

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