sexta-feira, janeiro 16, 2004

Novamente no Confessionário...A VIA SACRA

Entrou no confessionário com as suas vestes negras enviuvadas, Judite Raimundes de Sousa.
Tinha acabado de cerrar a cortina castanha de veludo com a mão direita, enquanto que na mão esquerda com a sua pele de mármore segurava um crucífixo que trouxe de Fátima. Foi em dias mais morenita, mas desde que o esposo faleceu, recusa-se a andar por aí, sair de casa. Então o sol que apanha é sempre filtrado pelos cortinados da sua discrição. Não é mulher que goste de ouvir palavras sobre a sua conduta.
O Padre está na sua frente, sentado de pernas semi-abertas com a túnica caíndo em forma de quarto minguante, como uma lua, sobre a cadeira de madeira enegrecida de um castanho quente. Voltando-se, este ergue a sua cabeça para com uma voz calma e estrondosa, de arrepiar a coluna toda, soltar um "boas noites" silvado naquele sotaque já instituído dos padres do nosso país.
Ela mal ergueu os olhos. Sentou-se na sua cadeirinha almofadada com a cabeça em penitência para o chão, como quem havia chegado de carregar pelo menos metade dos pecados do mundo.
Ele soltou as palavras cerimoniais, num rangue rangue baixinho e morno. Perguntou-lhe o que a levava a vir confessar-se.
Ela, frágil, começou quase com um soluço para lhe dizer que tem cumprido a vida religiosa com o maior afinco, dedicando-se a todo o momento á sua fé. Que em casa tem sido zelosa, e que na rua, sempre que pode, é generosa com os mais pobrezinhos.
O Padre sorriu como em sinal de aprovação através de um erguer ligeiro dos seus lábios, mas mostrava agora esperar pelo pecado.
Judite, continuou então, a sua mão apertava ainda mais o crucifixo, enquanto que a mão direita segurava agora o seu peito, não lhe fosse rebentar.
Ali dentro, no confessionário ouvia-se a respiração bem próxima. O calor parecia ser ainda mais intenso. Era o fogo do inferno.
-"...Sr.Padre, sinto-me só, apesar de me encher da presença do Senhor, de me bastar pensar nele para ser feliz, a verdade é que me sinto só pelas noites e esquinas da minha casa... este pecado roi-me por dentro"-, tinha agora a mão no pescoço que apertava como a esquerda apertava o crucifixo.
Então a direita segurou o crucifixo. O calor que dele emanava parecia ser a redenção de todo o mal.
Intensificou-se o ardor, e a mão esquerda desceu para o colo tapado de negro. O padre pede-lhe para rezar o Pai Nosso.
Ela começa a rezar tão baixinho, tão baixinho, que parece um gemido sofrido e apaixonado.
A mão esquerda, sente o crucifixo a cravar-se-lhe entre os dedos, e a mão direita está agora no seu pescoço, com a mão esquerda descobre o alvor que parece de um anjo, a luz brilha alva no confessionário, a salvação está no arrependimento.
Das vestes negras enviuvadas, sobressai aquele branco carnal onde o paraíso parece feito de seda e uma roupa amarela, torneada de bordados imensos, parece estar a ferver de perfume, que como uma rosa pede para não ser arrancada pelo jardineiro que tão bem a soube fazer viçosa.
A mão direita agarra frenética a beira da mesinha. A mão direita segura o peito não lhe vá explodir...a mão esquerda toca em carnudas pétalas da rosa...o rosa quente da absolvição...da mão esquerda cai o crucifixo.

...Jesus cai pela quarta vez...desta vez, Simão, o Cirineu, não surgiu para o ajudar a levantar-se. Mas, também já não necessita de consolar as "filhas de Jerusalém". O padre tomou esse fardo por ele.

"Quia per sanctam Crucem tuam redemísti mundum"

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