quinta-feira, outubro 27, 2005

superficial

Continuamente


Este vazio dói-me mais do que qualquer outra dor

Vazio que tem nome e é quase sepulcral

Triste realidade, amarga como o sonho.

Tento por tudo permanecer acordado

Incessantemente

Tento, sabendo-me cansado de tentar

Tento-me,

Vou viver a mentira porque é mais fácil,

Porque nunca soube significar


Algo maior do que o meu consciente

Em toda a metafísica da minha razão.

Como o amor que nunca foi mais que palavra,

Jamais passou de intenção e se questiona.

O mundo é feito de cenários inventados...

A verdade não existe. É verdade que não existe!

É somente uma expressão, um desejo, uma flor

Sem a qual não faz sentido um jardim

após ter aberto a mãos um buraco à medida



E o jardineiro sem acepção

continua a regar aquele vazio

Incessantemente

sempre

sem que seja uma escolha

talvez, por mera rotina do seu ser.

É um zelo de profissão

é para isso que é pago

é a insanidade da repetição

é o que supostamente não se deve fazer

é o que supostamente não se deve fazer

é a comédia aos olhos dos outros e a loucura

nos comentários dos outros

e não se nota que a ele não lhe interessam

os outros

...

Ninguém o ouve a respirar



Atentamente se nota que não respira



...



ele canta ao invés, o seu encantamento...



ele não respira



De que matéria somos feitos?

Aparentemente, seríamos apenas números

E as dores são números?

Não são de facto tragédias, porque essas são formulas,

tendem a obedecer!

e O que é a liberdade?



Da liberdade sei apenas que acaba com um Não

reconheço-a apenas em lágrimas secas

que não se atrevem a sair e nos secam

para que se toque o resto de forma superficial

representando a melhor e mais conformada das mentiras

a falsa continuidade dos dias.

sábado, outubro 01, 2005

Memória

Que mundos nos vão na memória? Há algo distorcido na lembrança, talvez pela vontade. Se pudesse recontar a minha história...talvez fizesse melhor, mas esse melhor depende apenas do agora. E agora? o que será melhor? Melhor Melhor Melhor Melhor, toda a vida temos de ir mais além superando e crescendo. Ah, quero é pedras, frias no Verão, quentes no Inverno. Quero espinhos na pele em vez de poros. Impermeável.
E continuo à espera, à cadência do relógio, talvez à espera de um fim, como que um começo. Haverá veneno que me preencha as veias e sature o monstro produto da vida educada por transmontanos, da alimentação cheia de fermento das carcaças, da televisão dos anos 80, dos óculos do Ramalho Eanes, os desfiles militares, o Mário Soares com aquele penteado às ondinhas, a figura mítica de um Sá Carneiro que recordo levemente, vestido com aqueles fatos que se vestiam em França, as saias por cima do joelho com collants castanhos, e as feijoadas com ovo da minha tia, a arma fanada dos tempos de recruta dos meus primos mais velhos, e das revistas porno percorridas às escondidas, dos caramelos espanhóis do natal, do camião da coca cola a pilhas que desmontei por prazer e curiosidade, das couves e batatas da horta, e dos baldes de água que me aleijavam os dedos, água da mina cheia de libelinhas, onde brincava sozinho, no meio das árvores, e com camisolas de lã feitas pela minha mãe que me picavam pele fina de criança, a pedrada que levei na cabeça e trespassou o lenço de sangue da contínua que me levou aos bombeiros, os putos do horário da manhã a recuar perante um ciganito armado de uma navalha, uma escola inteira, os trocos que gamei aos meus pais para comer gelados e comprar cromos da pantera cor de rosa naquela papelaria junto à escola, onde encontrei quinhentos escudos, e o dono já deve ter morrido, as viagens no auto carro para a escola de Mira Sintra com a miudagem a fazer "surf" naquela descida enorme, os suspiros do quiosque, a primeira coça que levei de outros putos, os dedos cortados no x-acto, as férias em Trás-os-Montes, a praia das maças ou a parede, com a minha mãe sempre aflita, porque eu pensava ser um peixe, as rochas com curiosos e fugidios caranguejos, sozinho no mar, a bicicleta que ganhei ao vir para a Damaia, e com a qual esburaquei um joelho, a vida da preparatória onde decidi vir a ser arqueólogo, as baldas às aulas para ir explorar os esgotos de Alfragide, onde a criançada curtia uma saída de água no final do túnel escuro, os tubos com que se disparavam as bagas, os intervalos a correr para o atelier de pintura, paixão dos 11/12 anos, com as barbas do Rui Pedro Chorão que eu adorava como um pai, a exposição das pinturas, as que os meus pais mais tarde deitaram fora, a macaca, a ciranda com os meus vizinhos angolanos, o soco que dei no Chano por ele me chamar gordo, ficou por chão e eu senti que o poder sabe demasiado bem, os jogos de computador em casa do mais gordo e papa-açorda que tinha um irmão deficiente com que os putos gozavam na escola e eu não gostava, o irmão do João Paulo atirava-se para o chão por um rebuçado, e os putos da moda então, hoje, não dizem nada a ninguém, a secundária onde encontrei uns matulões convencidos que infernizavam a vida dos mais novos, o ano que chumbei por ter pressa de viver, por não gostar de dizer “não” há vida, as voltas à interminável secundária, as primeiras paixões, a Ana Clara (hoje não me apaixonaria por ninguém com este nome), o momento em que soube que seria sempre tímido e demasiado inibido, timorato, até ao dia em que alguém me engatou, todos aqueles anos de secundária em que era sobretudo barra a história, as noites que passava na biblioteca da escola a ler porque os meus pais nunca foram de comprar livros, o décimo segundo ano a ter aulas com a "maluca" de filosofia, imagem que adorei ter conhecido, que personagem, e eu delegado de turma, que imaginação dos meus colegas, a entrada para Coimbra, anunciada estava eu neste computador a jogar uma porcaria qualquer, e depois Coimbra.
Coimbra é outro capítulo, como o meu nascimento o é na memória dos meus pais.